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Aventuras... do desemprego #2

Compareço à hora marcada e espero: o escritório está fechado e não se vê ninguém lá dentro. Para uma entrevista agendada para as 14h00 um ligeiríssimo atraso de 20 minutos… podia ser pior. E foi.
Chega finalmente um casal: uma senhora de cabelo-palha (na cor e na secura do cabelo), unhas roídas e calças de ganga deslavadas, mas com uma blusa fina, com apliques cheios de brilhantes. O homem é mais velho, na casa dos 60, alto e com um fato barato. O cabelo todo lambido para trás e colado à cabeça por alguma matéria pegajosa, que reluz com o sol.
Ofereço um aperto de mão enérgico à senhora e ela reage quase como se lhe tivesse apontado uma arma. Olha-me para a mão estendida e lá se decide a apertá-la, sem grande força, nem convicção. Convidam-me a aguardar numa sala de espera, porque os 20 minutos que esperei lá fora não devem ter sido suficientes. Agradeço, naturalmente.
O senhor chama-me então para a entrevista. Entro na sala: não tem janelas e a única fonte de luz é um candeeiro de pé alto, atrás da cabeça dele e virado para mim, o que me faz pensar em interrogatórios e séries policiais. Sento-me à frente da secretária dele e descubro que não tenho espaço para poisar as mãos: há um porta-canetas, um pisa-papéis, um calendário e umas caixas pequenas, restando apenas um intervalo onde coloco as mãos cruzadas e endireito as costas.
Então, é a D. Dulcamara?” – diz ele, olhando para uma folha onde deve ter os meus dados. “Desculpe lá, mas hoje fui almoçar com o patrão e comi cá um bacalhau… Uma maravilha!” Sorrio. Olho discretamente para o resto da sala: há outra secretária, também com tralhas em cima e umas caixinhas parecidas com as que tenho ao lado das mãos. Tento ler o que dizem, mas não consigo.
És casada, Dulcamara?” Ok, já nos tratamos por tu, pelos vistos, e passámos às questões relevantes: o meu estado civil. Respondo afirmativamente e o homem olha-me para os ombros e continua: “Tu tens boa aparência, sabes? Acho que te enquadras.” Mau… Mantenho um sorriso, já a fugir para o amarelado. “O que é que te fez concorrer para este emprego?” Explico que tenho experiência como administrativa e na área comercial, daí a minha candidatura. Como o anúncio pedia alguém para estas funções numa empresa de importação / exportação, aproveito para questionar qual a área de negócio. “Sabes, o mercado é uma coisa muito dinâmica: se agora der dinheiro vender camisolas, não nos vamos pôr a vender maçãs, não é?” (Começo a franzir o sobrolho.) “Nós estamos em várias frentes… E ainda há bocado estava em frente a um bacalhau, que bacalhau… E o patrão é que pagava!” E solta uma gargalhada ruidosa. (Interrogo-me se o senhor estará sóbrio.) Sorrio, agora em amarelo vivo. “Nós aqui vamos-te ensinar a nadar!” (Nesta altura, o cheiro a esturro é incontornável.) A nadar? - pergunto. “Sim, sim, há empregos em que vais e trabalhas e quem ganha é o patrão, há outros em que tu podes ser o patrão!” (Oh, Deus…) “Eu vou-te ensinar a nadar de modo a que tu nades em todas as praias do mundo! Nós aqui estamos a recrutar pessoas, não para empregados mas para patrões! Daqui a um tempo podes estar tu aqui, sentada nesta cadeira!” (Toda a tensão da entrevista começa a dissipar-se e penso onde raio vim eu parar? O meu sorriso já é mais para disfarçar a vontade de rir.) “Sabes que eu já trabalhei em muita coisa, agora estamos aqui e amanhã podemos não estar. Eu até já estive no Brasil!” (Olhe que bom para si.) “Nesta empresa eu levo-vos a atravessar uma estrada… Tu quando atravessas uma estrada como é que fazes?” OK, respiro e respondo Com cuidado, tem que se ter cuidado.Exactamente!” – berra o senhor. “E aqui sou eu que ensino a melhor maneira de atravessar. Não vou sempre convosco, mas sou eu que ensino. Depois, cada um voa sozinho.“ Na minha cabeça listo as possibilidades para o possível negócio desta empresa: aspiradores? Filtros para água? Droga? “E depois, um dia, eu digo: agora vais tu sozinho, como se diz a um filho.” Nisto, o homem faz uma cara de bebé chorão, e grita, com voz de falsete “Oooh pai, mas eu não quero ir sozinho…” E eu rebento numa gargalhada, não consegui evitar. O senhor tem aí um lado de actor muito interessante, olhe que se calhar devia explorar essa faceta. O parvo do homem aceitou a minha intervenção como um elogio e continua. “Eu acho que tu te vais enquadrar, sim senhor.Pois, mas ainda não me explicou qual é a função ao certo…Então não disse, eu já te disse tudo! Tu queres trabalhar? Sabes que aqui toda a gente ganha muito bem! Tu podes vir a ganhar 50€ por dia! Tens dúvidas?Por acaso tenho, olhe fazem contrato ou é a recibos verdes? Qual é o ordenado base? Trabalharia aqui, neste escritório? Qual é o horário de trabalho?Isso tudo tu vais vendo, olha, segunda-feira já podes começar.” (E começa a escrever num papelinho. Começo a enervar-me.) O homem dá-me o papelito rabiscado: um nº de telemóvel e o nome de uma mulher. “Estás cá de manhã às 8h30 e essa pessoa vai-te acompanhar para te mostrar o que fazer.” (Devo estar nalgum filme de terror, só pode, penso com os meus botões). Mas se ainda nem me disse o que viria fazer, ia assim começar a trabalhar sem saber de nada? Mas queres saber o quê?” Bem, tudo: o que vou fazer, quanto me pagam… Podes vir a ganhar 50€ por dia, já disse!Posso vir a ganhar? Então é algum trabalho à comissão? O senhor levanta-se e leva-me a uma outra sala, onde está a senhora do cabelo de palha, no meio de caixotes, vermelha e ofegante. Ele aponta para umas caixas mais pequenas e diz, já nervoso: “Queres saber o que vendemos? É isto, são perfumes. Cada caixa destas vale 50€.” Passa um braço à volta do pescoço da desgraçada: “Olha, ela não ganha 500€.” (e eu penso: uns 200?) “Nem 600… Ganha mesmo muito bem!” A senhora tenta conter um sorriso, mas eu apanhei-o. “Falem aí as duas e já sabes, podes vir a ganhar muito dinheiro!” E dirige-se novamente à sala de interrogatórios entrevistas, onde já está um rapazinho à porta.      
Agradeci à pobre senhora e fugi dali para fora.

São 4 da tarde, mais uma aventura.   

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